Última atualização: 19/11/2025 às 14:43:00
Os temas em debate no Mês da Consciência Negra podem ser os mais diversos, como bancas de heteroidentificação, Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, letramento racial, mas todos eles convergem para um único ponto: as feridas formadas por quase 400 anos de escravidão e as cicatrizes que ainda marcam as pessoas negras no Brasil. Ontem (18/11), o Tribunal Regional Federal da 5ª Região - TRF5 reuniu integrantes da magistratura e da academia para um debate aberto sobre o tema, dentro da programação do ciclo de eventos “Letramento para equidade racial”.
O encontro foi uma iniciativa da Unidade de Monitoramento e Fiscalização de decisões, deliberações e recomendações do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos no âmbito da Justiça Federal da 5ª Região (UMF/JF5). Compuseram a mesa de abertura do evento a vice-presidente do TRF5, desembargadora federal Joana Carolina, e as desembargadoras federais Germana Moraes, coordenadora da UMF/JF5, e Cibele Benevides.
Em sua fala, Joana Carolina reafirmou o compromisso do Tribunal com o tema. “O TRF5, além de julgar os processos, também tem esse propósito de conscientização, sendo, inclusive, uma política estimulada e recomendada pelo Conselho Nacional de Justiça, vista com bons olhos por todos nós que defendemos essa causa”.
Já Cibele Benevides reforçou a importância do debate sobre o tema. “É muito importante o aprofundamento do debate sobre o que levou os espaços de poder brasileiros a serem predominantemente masculinos e brancos. A escravização de pessoas negras, uma chaga que foi nossa realidade por mais de 300 anos, ainda tem seus reflexos em todos os ambientes que frequentamos. Que nós possamos ampliar o nosso olhar para trazer um pouco mais de justiça”.
Julgamento com perspectiva racial
O primeiro painel abordou o tema “Julgamento com Perspectiva Racial na Corte Interamericana de Direitos Humanos”, com participação da professora Flavianne Nóbrega, do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); do Doutor Honoris Causa da UFPE, babalorixá Ivo de Xambá; e da pesquisadora Malu Stanchi (UFPE). A condução dos debates foi de Joana Carolina.
Pai Ivo, como é comumente chamado, fez um resgate histórico das Constituições brasileiras – que, mesmo sem previsão expressa, continham normas que suprimiam direitos das pessoas negras –, e refletiu sobre o período de colonização do Brasil. “Eu costumo dizer que não acredito em colonização, mas em invasão. Quando o Brasil foi invadido pelos portugueses, o fuzil e a espada foram tão letais quanto a cruz, porque o fuzil e a espada mataram o indígena e a cruz acabou com a cultura dos povos”.
A religião afro também foi um dos pontos abordados pelo babalorixá. “Os negros não trouxeram nenhuma religião para o Brasil. Eles trouxeram espiritualidade sociocultural. Porque 90% da cultura desse país é do candomblé: o samba, a capoeira, o maracatu, o maculelê, a ciranda”. E finalizou com um provérbio africano: “enquanto os leões não contarem a sua história, prevalecerá a história do caçador”.
Em seguida, Flaviane relembrou o caso que envolveu o Povo Xukuru, cujo julgamento ocorreu no TRF5, com acompanhamento da UMF/JF5. “A criação da UMF é uma iniciativa de vanguarda do TRF5. A primeira decisão que responsabilizou o Brasil pela grave violação do direito dos povos indígenas envolveu o Povo Xukuru, do estado de Pernambuco. Toda essa mobilização fez com que fosse criada essa unidade de monitoramento, que permite que todos os direitos humanos possam ser incorporados, não só indígenas, mas, também, os relacionados ao enfrentamento racial, a parâmetros envolvendo a preocupação não discriminatória que deve ser implementada no dia a dia”.
Por fim, Malu Stanchi trouxe um caso prático de duas mulheres negras que sofreram preconceito enquanto participaram de um processo seletivo, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Para ela, o racismo pode se apresentar de várias formas. “O racismo é um fenômeno dinâmico. Hoje ele pode se dar de uma forma; amanhã, de outra. Para além de uma questão de representatividade, há uma questão de agenda, para saber quais demandas precisam ser discutidas no âmbito institucional dos países que aderiram à Convenção de Direitos Humanos e à Convenção Interamericana contra o Racismo”.
Justiça e identificação de pessoas pardas
O segundo painel foi sobre “Justiça e identificação de pessoas pardas”. Participaram a desembargadora Germana Moraes, o desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) Eudes França; a juíza de Direito Luciana Maranhão, que é membro da Comissão Permanente de Heteroidentificação do Exame Nacional da Magistratura em Pernambuco, coordenadora da Comissão para a Equidade Étnico-Racial e de Gênero (CEERG) do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PE) e vice-presidente da Comissão de Políticas Judiciárias de Equidade Racial e suas Interseccionalidades (CPJERI) do TJPE; e a advogada Manoela Alves, fundadora do Instituto Enegrecer e diretora da Ordem dos Advogados de Pernambuco (OAB-PE).
O painel foi conduzido pela desembargadora federal Gisele Sampaio, gestora do Pacto pela Equidade Racial no TRF5. “No âmbito do Poder Judiciário, a identificação das pessoas pardas para fins de aplicação das políticas voltadas para pretos e pardos é um dos temas dos mais desafiadores. Em um país como o nosso, a identificação das pessoas pretas e brancas não é tanto objeto de polêmica, mas, quando passamos para pessoas pardas, passamos a ter vários questionamentos judiciais que abarrotam tanto a Justiça Federal quanto a Estadual”. Para ela, refletir sobre isso é uma ação necessária. “Essa reflexão coletiva sobre o tema é importante porque vamos pensando juntos e avançando nas soluções”.
Para Manoela Alves, o debate que envolve a cor da pele e a autodeclaração é desafiador. “Pensar que a branquitude tem diversos tons e negritude também nos leva a refletir que esse cenário é realmente desafiador e precisa ser enfrentado. Quando falamos de pessoas pretas, não há maiores problemas no processo de autoidentificação. Mas, quando falamos das pessoas pardas, especialmente se elas tiverem um tom de pele mais clara, teremos situações com leituras diferentes”.
O colorismo também foi um ponto abordado por Manoela. “Existe um debate hoje muito importante, que é questão do colorismo, que é entender que temos tons diferentes de pele negra, por exemplo. Dentro desse colorismo, as pessoas que tiverem o tom de pele mais escuro irão gozar de menos acesso, terão menos oportunidades. Por isso, é importante demarcar quem é preto e quem é pardo”. Ela também acredita que o Pacto Nacional para Equidade Racial do CNJ é uma ferramenta importante. “O Pacto é extremamente completo e tem sido bem-sucedido nessa perspectiva de orientar o Poder Judiciário a atuar nesse processo de identificação”.
Germana Moraes continuou o debate, trazendo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre os percentuais da população branca, negra, indígena e amarela no Brasil. A magistrada também destacou que são muitos os processos que chegam à Corte referentes ao acesso a cargos, empregos ou vagas em universidades que encontram dificuldades de identificação das pessoas pardas.
Germana pontuou que é preciso ter cuidado com o racismo estrutural. “Nós temos, tanto na autodeclaração quando nas comissões de heteroidentificação, as armadilhas do racismo estrutural, que é aquele que está no inconsciente. Temos que estar alertas com relação a isso”.
Já Eudes França enfatizou a importância da autodeclaração de cada pessoa. “Acredito que a validação da autodeclaração é uma questão de legalidade, e não de discricionariedade, como foi no passado”.
Encerrando a programação, Luciana Maranhão defendeu que o tema do painel percorre o racismo e a discriminação que a população negra sofreu durante mais de 300 anos de escravismo. “Precisamos muito desse diálogo, desse aprofundamento, em todo esse percurso que estamos vivendo. Isso é fruto de tantos homens e mulheres que vêm lutando para fechar de vez essa ferida histórica, que é o racismo que a gente vive nesse país”.