Última atualização: 19/12/2023 às 14:17:00
Inicialmente, a metodologia para considerar um(a) candidato(a) a vagas em instituições de ensino e cargos públicos como preto(a) ou pardo(a) era simples: bastava uma autodeclaração sobre sua condição étnico-racial. Entretanto, a implementação de políticas afirmativas que têm impacto no preenchimento dessas vagas gerou a necessidade de se criar um processo de controle, com o propósito de evitar fraudes no sistema de cotas. Com um hiato de quatro anos, aproximadamente, entre a publicação da lei que criou as cotas (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012) e a divulgação da norma que complementou a legislação (Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018, do Ministério do Planejamento), foram criadas as comissões de heteroidentificação. Em paralelo, o Judiciário também vem ganhando papel importante nesse controle, tanto para garantir o direito de pessoas negras a ingressarem nas universidades e nos cargos públicos quanto para evitar fraude no sistema de cotas.
Em fevereiro de 2021, a Terceira Turma do Tribunal Regional federal da 5ª Região - TRF5 decidiu, por unanimidade, negar provimento às apelações da União Federal e da Fundação Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e manteve a decisão de Primeira Instância, que garantiu a uma candidata do concurso público de Auditor Fiscal Federal Agropecuário do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) o reconhecimento de sua condição como pessoa negra, bem como sua nomeação e posse no cargo (Processo nº 0807503-46.2019.4.05.8100).
A União argumentava que a autodeclaração não teria presunção de veracidade, e que, segundo a Comissão Recursal de Heteroidentificação, as características físicas da candidata seriam insuficientes para ela fosse reconhecida socialmente como negra, apesar de apresentar cabelos ondulados escuros e pele morena clara.
Para o relator do processo, desembargador federal Fernando Braga, entretanto, a concorrente encontrava-se no que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Roberto Barroso, chamou de “zona cinzenta”, ou seja, a candidata tinha características de pessoa não branca, e a Administração Pública teria adotado um posicionamento desproporcionalmente restritivo em relação ao caso. “A política afirmativa aqui tratada busca reparar racismo estrutural existente na sociedade brasileira, e tal racismo tem por vítimas justamente as pessoas vistas como "não brancas" pela sociedade”, afirmou Fernando Braga.
Já em julho de 2020, a Primeira Turma de Julgamento, por unanimidade, negou provimento à apelação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e garantiu a matrícula de uma estudante autodeclarada parda e oriunda de escola pública no curso de Arquitetura e Urbanismo naquela instituição de ensino, nas vagas reservadas à ampla concorrência, mantendo a decisão proferida em Primeira Instância (Processo nº: 0804037-53.2019.4.05.8000). Ela não foi declarada negra pela comissão de heteroidentificação, mas alcançou pontuação suficiente para ingressar na instituição de ensino nas vagas de ampla concorrência.
O Juízo de Primeiro Grau julgou que, a despeito do que estabelece o edital, o fato de ter sido negado pela Administração o enquadramento da autora como cotista não pode acarretar sua exclusão do certame, devendo ser permitido o aproveitamento da sua nota, para fins de classificação nas vagas destinadas à ampla concorrência.
De acordo com o entendimento do relator do processo, Elio Siqueira, a ocorrência de uma irregularidade ou o fato de a candidata não ter conseguido comprovar que faz jus à reserva de vagas dos candidatos optantes pelas cotas raciais não pode prevalecer sobre seu conhecimento. “O mérito da candidata, que obteve nota apta ao ingresso em qualquer das vias disponíveis, deverá preponderar diante da mera irregularidade formal ou do equívoco no momento da inscrição do certame. No caso, tendo a candidata logrado êxito em ter nota suficiente para entrar na listagem da ampla concorrência, a ela deve ser assegurado o direito de se matricular no curso requerido”, salientou Siqueira.
Combate às fraudes
Em janeiro de 2020, diante de denúncias de fraudes às cotas raciais na Universidade Federal de Sergipe (UFS), o Ministério Público Federal (MPF) celebrou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Universidade, para que a heteroidentificação fosse adotada em todos os processos seletivos, a partir de então. Em outubro de 2021, a UFS resolveu convocar alguns alunos e alunas para se submeterem à análise de uma comissão de heteroidentificação. Uma dessas estudantes impetrou um mandado de segurança para que o procedimento fosse considerado ilegal, porque não estava previsto no edital vigente à época de sua entrada da universidade (SISU/MEC 2019.1).
O processo (nº 0805376-31.2021.4.05.8500) tramitou na 2ª Vara da Justiça Federal em Sergipe, que considerou legítimo o procedimento. Houve recurso e a Terceira Turma do TRF5 manteve a sentença de primeiro grau, registrando que o edital que regeu o processo seletivo de ingresso da estudante na UFS já advertia que os candidatos que fornecessem informações inverídicas poderiam perder o direito à vaga, a qualquer tempo, mesmo depois de matriculados.
O desembargador federal Rogério Fialho, relator do processo, votou pela legalidade do procedimento, por entender que a convocação visa a apurar eventuais fraudes, para assegurar o correto cumprimento da política de cotas raciais e impedir que sejam beneficiadas pessoas que não fazem jus à reserva de vagas. Assim, a estudante não poderia se abster do exame da comissão de heteroidentificação, que se propunha a verificar a validade da autodeclaração que a candidata apresentou para ingressar na universidade.
"Não há direito líquido e certo da apelante a não ser submetida ao exame da comissão de heteroidentificação para fins de apuração da validade da autodeclaração que apresentara por ocasião do seu ingresso na universidade", defendeu o magistrado, em seu voto.
Em acórdão recente, de novembro de 2023, a Quinta Turma do TRF5 decidiu, por maioria, dar provimento às apelações do Ministério Público Federal (MPF) e da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e reformou a sentença da 2ª Vara Federal de Sergipe, que havia concedido mandado de segurança a um aluno de medicina da UFS, suspeito fraudar o sistema de cotas daquela instituição de ensino (Processo nº 0800477-19.2023.4.05.8500).
O estudante, que se autodeclarou negro para ingressar na Universidade, já havia concluído mais da metade do curso e se recusou a atender a uma convocação para se submeter ao exame da comissão de heteroidentificação, após denúncia de fraude, visto que haveria a suspeita de que ele não apresentava as características físicas autodeclaradas. Para tanto, o aluno impetrou o mandado de segurança, na Primeira Instância, pleiteando a nulidade do ato de convocação.
De acordo com o MPF, mesmo atuando após o ingresso do candidato, não há que se falar em ilegalidade, pois, conforme a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal (STF), a Administração pode anular seus próprios atos, quando contêm vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos.
Para a relatora do processo, desembargadora federal Joana Carolina, embora não houvesse a previsão da fase de heteroidentificação no edital, é dado à Administração Pública, no exercício de seu poder-dever de autotutela, analisar a regularidade dos atos de matrícula, verificando se os candidatos às cotas fariam, efetivamente, jus à ação afirmativa promovida pela instituição. Ainda segundo a magistrada, em tais situações o exame deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência. “Acresça-se ainda que, no presente caso, não se enquadra o impetrante em ‘zona cinzenta’, uma vez que, em observação da fotografia anexada aos autos, não há dúvidas de que não possui o fenótipo de preto/pardo”, afirmou a relatora.
A professora Maria da Conceição Reis, coordenadora do Núcleo de Políticas de Estudos das Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) destaca que nem sempre é uma questão de má fé a pessoa se autodeclarar negra e não ter, de fato, direito às cotas raciais. “Para ter direito a essas vagas, você precisa ser um pardo com aspectos negroides. Mas toda a sociedade sabe disso? Não. O que a sociedade sabe é que existem cotas e que um pardo tem direito. Aí a pessoa vai e se inscreve. Mas hoje as pessoas já estão entendendo melhor como é que isso funciona”, explicou.
Legitimidade das comissões
A legitimidade das comissões de heteroidentificação também tem sido alvo das decisões da magistratura. Há um posicionamento no sentido de que o Judiciário não pode substituir a comissão e declarar a condição étnico-racial do concorrente, mas apenas avaliar se foram obedecidos os requisitos formais previstos na legislação. Caso contrário, realizaria controle de mérito sobre o ato administrativo, o que é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Sob essa perspectiva, a Sétima Turma de Julgamento decidiu, em junho de 2023, manter a exclusão de um candidato de concurso público aberto em 2021 para o cargo de policial rodoviário federal (Processo nº 0800296-49.2022.4.05.8501). O concorrente, que disputava uma vaga pelo sistema de cotas raciais, havia se declarado pardo, mas essa condição foi refutada pela banca de heteroidentificação. O Colegiado entendeu que que a heteroidentificação é uma forma de controle do direito à reserva de vagas, e a comissão pode excluir o candidato da lista de cotistas quando concluir que o seu fenótipo não se enquadra no grupo racial a que ele declarou pertencer.
Em seu voto, o desembargador federal Frederico Dantas, relator do processo, ressaltou que a banca de heteroidentificação tem autonomia e a discricionariedade para atuar, sem vinculação ao fato de que o candidato tenha sido aceito no sistema de cotas em outro concurso. “Algum grau de subjetividade na análise feita pela comissão é inerente a esse tipo de avaliação”, pontuou. O magistrado destacou, ainda, que não haveria como manter o concorrente na lista geral de candidatos porque ele não alcançou a nota mínima e a classificação exigida para ser convocado nesse grupo.
Atuação questionada
Em contrapartida, apesar de terem sido criadas para auxiliar no combate às fraudes ao sistema de cotas e de serem reconhecidas como fundamentais nesse processo, em alguns casos, as comissões de heteroidentificação ainda têm sua atuação questionada judicialmente.
Em outubro deste ano (2023), a Quinta Turma garantiu a permanência de um aluno no curso de Medicina da UFS. O colegiado, por unanimidade, negou provimento à apelação da UFS contra a decisão de Primeira Instância, que anulou a decisão emitida pela banca de heteroidentificação (Processo nº: 0800085-16.2022.4.05.8500).
A Universidade havia convocado extraordinariamente o estudante, que já se encontrava no sexto período do curso, para se submeter à análise presencial da Comissão de Heteroidentificação, que efetuou o procedimento complementar à autodeclaração, apresentada no ato da matrícula, e concluiu pela sua reprovação no critério fenotípico.
O entendimento da Turma, no entanto, foi que, mesmo sendo permitido à Administração utilizar mecanismos de heteroidentificação para coibir tentativas de fraudes, esse controle deve se dar com máxima cautela e, quando houver dúvida razoável sobre o fenótipo do(a) candidato(a), deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial.
De acordo com a relatora do processo, desembargadora federal Joana Carolina, em observação da fotografia anexada aos autos, é possível compreender que o aluno descende de pretos ou pardos. “Não trata, no caso dos autos, de certeza negativa sobre a cor, mas de dúvida, mormente em virtude das fotos que constam do caderno processual, em que apresenta pessoa de pele morena e cabelo crespo. Havendo dúvida, prestigia-se, como visto, a autodeclaração”, concluiu a magistrada.
Para a gestora do Pacto Nacional do Judiciário para a Equidade Racial no TRF5, desembargadora federal Cibele Benevides, não há dúvidas da importância das comissões, mas ainda há ajustes que se fazem necessários. “As comissões de heteroidentificação são muito importantes para evitar a ocorrência de fraudes na política pública de reserva de vagas para pessoas pretas e pardas. Elas são o método isonômico de confirmar a autodeclaração dos candidatos e evitar a existência de fraudes. O ponto nevrálgico para que as comissões de heteroidentificação possam ser dotadas de maior segurança jurídica me parece ser, além da qualidade e formação de seus membros, o tempo em que as avaliações são realizadas. Realizar as avaliações por comissões anos após a posse no cargo ou aprovação na universidade finda por não beneficiar a política pública, haja vista a dificuldade de preencher essa vaga pelo beneficiário real quando a autodeclaração não é referendada”, avaliou a magistrada. Ela destacou, ainda, a importância da fundamentação das comissões. “Outro ponto importante é que as decisões das comissões têm que ser efetivamente fundamentadas, de modo a viabilizar efetiva ampla defesa e contraditório”. pontuou.
Cibele Benevides acredita que a efetividade das comissões é um caminho para evitar possíveis fraudes. “A meu ver, a principal forma de evitar fraudes no acesso ao sistema de cotas é dando efetividade às comissões de heteroidentificação, de preferência já na publicação do edital, garantindo que a sua realização seja anterior à posse/matrícula. É importante que as fraudes sejam evitadas antes de causarem prejuízo ao patrimônio público - com investimentos em servidores/alunos não integrantes da minoria a ser beneficiada - e à própria política pública”.
Nota: Série de reportagens "Consciência Negra e Atitude". A partir de uma convergência de ações, como a adesão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5 ao Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial e a realização de um evento para marcar o Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, o TRF5, através da Divisão de Comunicação Social, publica uma série com três matérias especiais sobre equidade racial. O conteúdo mostra, sob o viés histórico e normativo, a importância de ações afirmativas para a inclusão de pessoas negras não somente no Judiciário, mas em todas as esferas da sociedade. Os textos são de Débora Lôbo, Paulo César Mesquita e Cláudia Holder, com edição de Isabelle Câmara.